sexta-feira, 27 de agosto de 2010

As memórias de um objecto

E se um objecto falasse!?O que me contaria? Quantas perguntas lhe faria... Faria de um dia, o dia do estado de sitio em casa. A ditadura de opressão a todos os objectos que testemunharam aquilo que nunca fui capaz de testemunhar, aquilo que mais anseio saber e falar, a imagem mais objectiva do meu pai. Um retrato neutro, um retrato que pudesse julgar por mim próprio, a sua própria voz (como eu gostaria de saber o seu tom de voz) desequilibrada ou perturbada, era a sua. Exigiria a sinceridade ou morte. Torturava relógios e amuletos, porque foram eles que em tempos de crise e felicidade testemunharam lágrimas e sorrisos, foram eles até que os provocaram. Quantas vezes participaram eles na vida activa do seu dono? Não atribuíssemos nós, afinal, o valor personificado a todas as coisas que nos acompanham, que vestimos e usamos, que exibimos de orgulho, aos momentos e às pessoas que nos passam. Que memórias seleccionariam para me contar? Será que por terem memórias, teriam consciência, como todas aqueles seres que guardam as memórias de uma alma perturbada? Teriam eles a noção do que me faria sorrir, chorar ou irritar? Pausariam perturbados, ou comovidos em determinado tema? Perturbar-se-iam com sonhos ou tornar-se-iam eles próprios a personalidade desequilibrada do ser em que viveram? Será que o meu pai confessou aos ponteiros do relógio o que o perturbava? As suas paixões e desilusões? Como ouviria ele o organismo mecânico no seu pulso? Como se adaptaram as silabas da sua confissão perturbada ao metronómico som dos segundos? Qual seria o ritmo da palavra amor? Qual seria o compasso da palavra filho? Porque raio o ponteiro dos minutos não o convenceu de que um minuto tem 60 batidas a mais do que o comedido segundo; que a hora têm 60 regulações a mais do que aquele importuno minuto? Que o calendário no quadrado limitado são 24 dos mais preciosos momentos (surpreendentes, perturbadores, de simples existência) e de que a seguir a este, existe sempre outro numero, um interminável ciclo cadenciado, um circulo natural de eternidade, afinal era essa a sua função como relógio, a sua consciência não o poderia ter deixado indiferente à perturbação, o castigo seria tão capital como a morte. A sua função era reagir...

Como gostaria de falar com ele.